Outra maneira de estudar o papel do Espírito no processo de salvação é examinar o ensino bíblico sobre os dons do Espírito e o fruto do Espírito, que não podem ser separados. Quaisquer dons que o Espírito tenha dado precisam ser exercitados em amor, alegria, paz e todos os demais aspectos do fruto do Espírito. Sempre que usamos nossos dons, sem a manifestação do fruto, seremos, como Paulo diz, apenas “como o bronze que soa ou como o címbalo que retine” (1 Co 13.1).
Vejamos primeiro o que o Novo Testamento ensina sobre os dons do Espírito. A palavra mais comumente usada pelos escritores do Novo Testamento, para descrever os dons do Espírito, é charisma. Essa palavra, entretanto, tem um largo espectro de significados. “Cerca de vinte dons são mencionados em conexão com a palavra [charisma]. A enumeração dos dons em Romanos 12 e 1 Coríntios 12 mostra que eles compreendem uma gama abrangente, desde administração de dinheiro até profecia, desde cura de enfermos até celibato”. Geralmente, a palavra se refere a dons específicos que Deus concedeu ao seu povo. Bittlinger define um charisma como: “Uma manifestação gratuita do Espírito Santo trabalhando em, e por meio de, mas indo além das habilidades naturais do crente, para o bem comum do povo de Deus”.
É importante observar que as charismata mencionadas no Novo Testamento não são apenas os dons espetaculares ou miraculosos operados pelo Espírito. Incluídos entre as charismata há dons de ensino, encorajamento, liberalidade em doar dinheiro (Rm 12.8), ajuda, administração (1 Co 12.28). Vemos, assim, que há alguma confusão quanto ao chamado neopentecostalismo ou “movimento carismático”. As charismata do Novo Testamento incluem muitos outros dons além dos dons espetaculares apresentados pelos círculos pentecostais e neopentecostais, como falar em línguas e curas. Cada cristão foi dotado com aquilo que pode e deve usar para servir o reino de Deus. Em outras palavras, não somente os pentecostais ou neopentecostais, mas toda a Igreja do Senhor Jesus é carismática.
Uma maneira comum de dividir os dons do Espírito é entre dons miraculosos e não miraculosos. Entre os dons não miraculosos estão os dons de ensino, governo e misericórdia. Entre os miraculosos estão os “dons de cura” (charismata iamatõn, 1 Co 12.9), “obra de milagres” (energémata dynameõn, 1 Co 12.10); e “falar em diferentes línguas” (gene glõssõn, 1 Co 12.10).
Qual é a função dos dons do Espírito? Eles habilitam os crentes para a realização de tipos específicos de serviços na igreja, ou ao engajamento em formas particulares de ministério no Reino de Deus. Seu propósito é edificar os crentes, construir a igreja e servir toda a comunidade cristã. Têm também um propósito missionário: levar incrédulos ao conhecimento salvador de Cristo, fortalecer na fé os novos convertidos e equipá-los para posterior testemunho.
Ainda hoje, continua havendo muita diferença de opinião entre os cristãos sobre a presença dos dons miraculosos. Ambos, dons miraculosos e não miraculosos, estão em evidência no livro de Atos, e estão presentes na lista de dons em 1 Coríntios 12. Todos os teólogos cristãos concordam que os dons não miraculosos estão presentes hoje na igreja. Alguns teólogos e estudiosos da Bíblia, particularmente os de orientação pentecostal e neopentecostal, dizem que os dons miraculosos ainda estão presentes na igreja, enquanto outros questionam isso.
Não se pode provar conclusivamente que os dons miraculosos estejam ainda presentes na igreja. Duas considerações de peso sugerem que os dons miraculosos, como “dons de cura” e falar em línguas, não devem mais ser procurados na igreja atual.
(1) Algumas passagens do Novo Testamento especificamente associam os dons miraculosos do Espírito com o trabalho dos apóstolos enquanto lançavam as fundações da Igreja. Um desses trechos está em Atos 14.3: “Entretanto, demoraram-se ali [em Icônio] muito tempo, falando ousadamente no Senhor, o qual confirmava a palavra de sua graça, concedendo que, por mão deles, se fizessem sinais (semeia) e prodígios (terata)”. Observe que o Senhor habilitou os apóstolos a fazer esses sinais e maravilhas (obviamente evidenciando o dom miraculoso do Espírito) a fim de confirmar o evangelho que traziam e dar-lhes crédito como mensageiros do evangelho.
Paulo escreve aos coríntios: “Pois as credenciais do apostolado foram apresentadas no meio de vós, com toda a persistência, por sinais, prodígios e poderes miraculosos” – sinais (semeiois), maravilhas (terasin) e milagres (dynamesyn) – (2 Co 12.12). Nessa passagem Paulo está reivindicando seu apostolado em oposição a homens que se proclamavam apóstolos, mas não eram. Vocês, pessoas de Corinto, Paulo está dizendo, deviam saber que sou realmente um apóstolo, pois os sinais de um apóstolo foram-lhes por mim demonstrados em abundância. Podemos estar razoavelmente certos de que esses “sinais, maravilhas e milagres” incluíam os dons miraculosos do Espírito, tão em evidência em Corinto (ver 1 Co 12-14). Não está Paulo dizendo que os dons miraculosos – que ele não só tinha como também estava habilitado a transmitir a outros em Corinto – serviam ao propósito de autenticar seu apostolado?
Na Epístola aos Romanos Paulo faz uma declaração sumária sobre sua missão aos gentios, na qual outra vez se refere à função dos dons miraculosos: “Porque não ousarei discorrer sobre coisa alguma, senão sobre aquelas que Cristo fez por meu intermédio, para conduzir os gentios à obediência, por palavras e por obras, por força de sinais (semezõn) e prodígios (teratõn), pelo poder do Espírito Santo” (15.18-19). Não fica claro, a partir dessa passagem, que os sinais e prodígios, que foram permitidos a Paulo realizar, eram meios de conduzir os gentios à obediência, estando assim inseparavelmente ligados ao seu ministério de apóstolo aos gentios? É particularmente significativo que na lista de dons em Romanos 12.6-8 (os quais Paulo insiste para que a igreja de Roma use), os dons miraculosos do Espírito, tais como curas e línguas, não são sequer mencionados.
No capítulo 15, Paulo reconhece que esses dons miraculosos foram manifestados quando ele trouxe o evangelho, implicando assim que sua função era a autenticação da mensagem evangélica. Mas ele não insiste que esses sinais e maravilhas continuem a ocorrer cada vez que os crentes se encontram. Paulo diz em seu livro, que a edificação da igreja é melhor servida pelo cultivo dos dons não miraculosos do Espírito, como ensino, generosidade, governo e misericórdia.
Hebreus 2.3-4 lança uma luz muito clara sobre o propósito dos dons miraculosos: “Como escaparemos nós, se negligenciarmos tão grande salvação? A qual, tendo sido anunciada inicialmente pelo Senhor, foi-nos depois confirmada pelos que a ouviram; dando testemunho juntamente com eles, por sinais (semeiois) e prodígios (terasin) e vários milagres (dynamesin) e por distribuições do Espírito Santo, segundo sua vontade”. Segundo essa passagem a palavra da salvação foi primeiro anunciada por Jesus Cristo. Depois foi confirmada ao escritor e aos leitores de sua epístola por aqueles que ouviram o Senhor, isto é, os apóstolos. Deus testificou (synepimartyrountos) a genuinidade dessa salvação por meio dos dons do Espírito Santo, os quais são aqui chamados de “sinais, maravilhas e milagres”. O propósito dos dons miraculosos do Espírito, como descritos nesse texto, era autenticar a mensagem da salvação para os leitores da segunda geração após Cristo.
Aprendemos nessas passagens examinadas que os dons miraculosos do Espírito eram “sinais de um apóstolo”, com a intenção de autenticá-lo como verdadeiro mensageiro vindo de Deus, assim como autenticar o evangelho que traziam como a palavra da graça de Deus. Uma vez que o trabalho e o testemunho dos apóstolos era o de lançar fundamentos (ver Ef 2.20) e, portanto, não repetível, os dons miraculosos não são mais necessários hoje.
(2) Não temos instrução no Novo Testamento quanto a se a igreja deve continuar manifestando os dons miraculosos do Espírito. Não há referências além de 1 Coríntios 12-14. Nem nas demais cartas paulinas, nem nas epístolas universais há a menor alusão ao dom de línguas ou dons de cura. A única aparente exceção se encontra em Tiago 5.14-15. Essa passagem, porém, não descreve um dom de cura, mas sim, uma oração pelos enfermos feita pelos presbíteros da igreja. Na verdade, a oração por enfermos é definitivamente requerida, mas o “dom de curas” não é endossado aqui.
As listas de dons do Espírito encontradas em outras passagens do Novo Testamento, além de 1 Coríntios 12, não mencionam os dons miraculosos já discutidos. Referi-me anteriormente à lista de Romanos 12.6-8; os dons ali enumerados são profecia, ministério, ensino, exortação, contribuição, presidência e misericórdia. Falar em línguas e dons de curar não são mencionados. O único dom dessa lista que pode trazer a ideia de milagre é o dom de profecia.
Esse parece ter sido um dom pelo qual alguém recebia uma revelação de Deus, ou habilitação para expor o plano da salvação. Ocasionalmente um profeta predizia eventos futuros. Em 1 Coríntios 14, porém, Paulo expressa sua preferência pela profecia de falar em línguas como superior (ver 1-5, 12, 18-19); o que ele enfatiza acerca de profecia no verso 3, de fato, é isto: “Mas o que profetiza fala aos homens, edificando, consolando e exortando”. Mencionando os dons de Romanos 12, então, Paulo está obviamente enfatizando, não o valor da profecia como manifestação espetacular do Espírito Santo, mas sua utilidade na edificação e instrução da igreja.
Há também uma pequena lista de dons em 1 Pedro 4.10-11; só dois dons são mencionados: falar (lalei) e servir (diakonei). Não há dons miraculosos mencionados aí.
Paulo enumera, nas epístolas pastorais, as qualificações do oficial da igreja. Nem em 1 Timóteo 3.1-13, nem em Tito 1.5-9, onde são listadas essas qualificações, Paulo diz uma única palavra acerca de línguas ou curas. Por outro lado, as charismata que são enfaticamente citadas aqui são os dons de ensino e de administração (1 Tm 3.2, 4, 12; Tt 1.6, 9; conferir também 1 Tm 5.17; 2 Tm 2.24). O que Paulo enfatiza como necessário para o bem-estar e crescimento da igreja são os dons não miraculosos, como a habilidade de ensinar e de administrar.
Autor: Anthony Hoekema
Trecho extraído do livro Salvos Pela Graça, pág 43-47. Editora: Cultura Cristã
Nenhum comentário:
Postar um comentário