Semeando o Evangelho

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Semear a Verdade e o Amor de Deus

quarta-feira, 4 de julho de 2018

UM PANORAMA HISTÓRICO DO GNOSTICISMO

Por Justo Gonzalez

Sob o título geral de “gnosticismo” estão incluídas diversas doutrinas religiosas que floresceram no século 2. A principal característica dessas doutrinas era seu sincretismo.14 Os gnósticos poderiam lançar mão de qualquer doutrina que achassem valiosa, sem qualquer preocupação com respeito à sua origem ou ao contexto do qual fora tomada. Quando os gnósticos entraram em contato com o Cristianismo primitivo e viram seu grande apelo, tentaram se apossar daqueles aspectos do Cristianismo que pareciam mais importantes para eles, adaptando-os a seus sistemas. Esse procedimento propôs um desafio urgente para aqueles cristãos que não o aceitavam. Tornou-se necessário mostrar que o gnosticismo deturpava a doutrina cristã; era preciso apresentar as razões pelas quais não se deveria converter Jesus Cristo em um mero elemento dentro de um sistema gnóstico.15

Tem havido um debate erudito muito grande a respeito das origens do gnosticismo, mas é provável que, por causa da própria natureza sincretista do gnosticismo, tal debate nunca possa ser decidido. O gnosticismo faz uso do dualismo persa, dos mistérios orientais, da astrologia babilônica, da filosofia helenística e praticamente de todas as doutrinas que circulavam no século 2. Portanto, o dito de Harnack segundo o qual o gnosticismo é “uma aguda helenização do Cristianismo” não é inteiramente preciso. Embora seja verdade que há fortes influências gregas no gnosticismo, é também verdade que esta é apenas uma das muitas fontes das quais os mestres gnósticos beberam.16

 Apesar de haver elementos especulativos muito importantes no gnosticismo, o fato desse ensino ser usualmente apresentado como um conjunto de sistemas de especulações numerológicas tornou impossível entender como tal doutrina pode ter sido um rival tão forte da igreja. O fato do gnosticismo ter se tornado uma alternativa atraente em relação ao Cristianismo ortodoxo deve-se, sobretudo, a seu interesse soteriológico. A fim de entender este apelo, deve-se interpretar o gnosticismo, acima de tudo, como um modo de salvação. O cosmopolitanismo que acompanhou as conquistas de Alexandre tinha sua contraparte no individualismo das pessoas. Acreditava-se que as antigas religiões nacionais não eram mais capazes de satisfazer às necessidades do indivíduo. Por esta razão, os séculos nos quais o Cristianismo começou a conquistar seu espaço no mundo foram caracterizados por uma procura pela salvação individual; consequentemente, nesse tempo, houve um crescimento daquelas religiões que proclamavam oferecê-la – e além do Cristianismo, assim faziam as religiões de mistério e o gnosticismo.

Dessa forma, o gnosticismo é, sobretudo, uma doutrina de salvação. Mas, para essa doutrina, qual é a natureza de tal salvação?17 De acordo com o gnosticismo, a salvação consiste na libertação do espírito, uma vez que este está escravizado por causa de sua união com coisas materiais. Nos seres humanos, o corpo e a “alma animal” pertencem ao mundo material, pois a alma é aquilo que dá ao corpo sua vida, desejos e paixões.18 O espírito na verdade não pertence a este mundo; é parte da substância divina. Por alguma razão que é normalmente explicada mitologicamente, o espírito caiu neste mundo e se tornou um prisioneiro da matéria. Sendo assim, é necessário libertar o espírito desta prisão; e isto é obtido por meio do conhecimento ou gnosis – por isso o nome de gnosticismo.

Tal conhecimento não consiste em mera informação. Trata-se, em vez disso, de uma iluminação mística resultante da revelação do eterno. O conhecimento é, então, uma compreensão da situação humana, do que fomos outrora e do que deveríamos nos tornar; por meio do conhecimento podemos ser libertos dos laços que nos prendem ao mundo material. Por outro lado, estamos de tal forma escravizados por nossa união com a matéria que somos incapazes de conhecer a verdade eterna por nossos próprios meios; isso torna necessário que um mensageiro seja enviado do mundo espiritual transcendente a fim de nos trazer sua revelação libertadora. Esse mensageiro é característico em todos os sistemas gnósticos, e no gnosticismo cristão é Cristo quem realizará esta missão.19

De qualquer forma, a doutrina da salvação deve estar baseada em uma compreensão de nosso lugar no universo, e esta é a função das complicadas construções especulativas dentro dos vários sistemas gnósticos. Se o espírito está aprisionado na matéria, deve haver uma razão para esta condição; e esta razão os gnósticos tentam oferecer por meio de suas especulações.20 Há duas características principais nestas especulações: seu dualismo derivado e sua numerologia. O dualismo do gnosticismo, que por muitos eruditos têm sido enfatizado como uma de suas principais características, não é um dualismo primário ou inicial; ao contrário, resulta de um monismo inicial.21 As especulações gnósticas são traçadas a partir de um único princípio eterno, do qual outros princípios ou aeons são produzidos em um processo declinante, até – geralmente é dito, devido a um erro em um dos aeons anteriores – o mundo material ser produzido. Assim aparece o dualismo derivado entre a matéria e o espírito, ou entre o celestial e o terreno. Dentro do processo de produção dos vários níveis de aeons, a numerologia – outra característica muito comum na especulação helenística – representa um papel importante, pois os aeons geralmente são produzidos seguindo certos modelos numéricos. A cosmologia gnóstica nasce de tal combinação entre o dualismo derivado e a especulação numerológica, e é caracterizada por uma complexa série de aeons que ficam entre o absoluto e o mundo material. Estes seres são frequentemente vistos como esferas que o espírito deve atravessar em seu retorno à eternidade.

Finalmente, a ética dos gnósticos está baseada em sua antropologia e cosmologia. Partindo-se da premissa de que qualquer bem que exista em nós deve ser encontrado em nosso espírito, sendo o corpo por natureza mau, pode-se chegar a duas conclusões opostas. Primeira: o corpo deve ser sujeito ã estrita disciplina e deve-se viver uma vida ascética; segunda, uma vez que qualquer coisa que se faça com o corpo não implica em qualquer diferença, uma vez que o corpo não danifica a pureza do espírito, então se pode permitir ao corpo fazer o que lhe agrada. É por esta razão que algumas seitas gnósticas eram extremamente ascéticas enquanto outras eram libertinas.22

Quando ocorria a combinação da cosmovisão geral gnóstica com o Cristianismo, muitos cristãos sentiam que sua fé era ameaçada em três pontos básicos: a doutrina da criação e do governo divino sobre o mundo, a doutrina da salvação e a Cristologia.

O gnosticismo era oposto à doutrina cristã tradicional da criação porque via no mundo material, não a obra do Deus eterno, mas o resultado de um erro cometido por um ser inferior, mal ou ignorante. De acordo com os gnósticos, as coisas deste mundo não são simplesmente indignas, mas até mesmo más. Afirmações como essa se opõem às linhas-mestras da tradição judaico-cristã, que afirma a criação de todas as coisas por Deus, o qual continua a agir na história do mundo.

Desta primeira discordância entre o gnosticismo e o Cristianismo tradicional, seguiu-se uma discordância similar com relação à doutrina da salvação. Segundo o gnosticismo, a salvação consiste na libertação do espírito divino e imortal que está aprisionado dentro do corpo humano. O papel do último no plano da salvação é simplesmente negativo. Em oposição a este conceito, a maioria dos cristãos afirmava a inclusão do corpo humano na salvação e que o cumprimento final do plano de Deus para a salvação não acontecerá à parte da ressurreição do corpo.

Finalmente, o dualismo gnóstico teve consequências desastrosas quando aplicado à Cristologia. Se a matéria, e sobretudo esta matéria que forma nosso corpo, não é o produto da vontade divina, e sim de algum outro princípio que é oposto a essa vontade, segue-se que esta matéria e o corpo humano não podem servir como um veículo para a revelação do Deus supremo. Sendo assim, Cristo, que veio para tornar esse Deus conhecido a nós, jamais poderia ter vindo em carne. Seu corpo não pode ter sido um verdadeiro corpo físico, mas apenas uma aparência corpórea. Seus sofrimentos e sua morte não podem ter sido reais, pois é inconcebível que o espírito divino dar-se-ia desse modo a si mesmo ao poder cruel e destrutivo da matéria. Dessa maneira, é legado dos gnósticos a doutrina cristológica conhecida como docetismo – no grego, parecer ou supor – à qual já nos referimos ao discutir os oponentes de Inácio de Antioquia.24 Em oposição a esta teoria, a maioria dos cristãos afirmava que em Jesus de Nazaré – em seu corpo, em sua vida, em seus sofrimentos, em sua morte e em sua ressurreição – deve ser encontrada a revelação salvadora de Deus. É por essa razão que tais cristãos viam o gnosticismo não como uma versão diferente de sua própria fé, mas como uma tentativa de despojar esta fé do próprio coração de sua mensagem.

Ainda que as escolas gnósticas sejam muitas, e o relacionamento entre elas não seja claro, pode-se tentar descrever alguns de seus sistemas como um meio de ilustrar suas características gerais.

Nosso conhecimento do gnosticismo deriva de seus escritos e das obras nas quais alguns antigos escritores cristãos os atacam. Até poucas décadas atrás, achava-se que somente um número muito limitado de escritos gnósticos tinha sobrevivido, e os eruditos eram forçados a seguir apenas o testemunho de escritos dirigidos contra eles. Naturalmente, a questão que sempre foi deixada sem resposta era até que ponto estes escritos antignósticos seriam confiáveis. Recentemente, foi descoberta uma grande quantidade de material gnóstico; com isso, nosso conhecimento do gnosticismo foi grandemente ampliado e esclarecido.25

De acordo com uma tradição muito antiga, cujo primeiro expoente é Justino,26 Simão, o mago, foi o fundador do gnosticismo.27 Historicamente, o que parece ser verdadeiro não é que Simão fundou este tipo de religião, mas que no capítulo 8 de Atos temos um relato de um dos mais antigos embates entre o Cristianismo e o gnosticismo. Em Samaria, onde Simão vivia, havia pessoas de várias partes do mundo antigo. Isso fez com que ali se desenvolvesse uma atmosfera muito adequada para uma doutrina sincretista, tal como o gnosticismo. De acordo com Justino e outros antigos escritores cristãos, Simão, o Mago, tinha muitos seguidores. Ele reivindicava que era o próprio Deus, ou que tinha o poder de Deus, e que sua companheira Helena era o Espírito Santo. O livro de Atos afirma que ele foi batizado como cristão. Apesar de não haver evidências de que ele tenha se apropriado de outras doutrinas cristãs, este episódio ilustra o espírito sincretista do gnosticismo.

Menandro, um discípulo de Simão, o Mago, foi uma pessoa obscura que à primeira vista parece ter sido um judeu gnóstico e não um cristão. Segundo antigos heresiologistas,28 Menandro era especializado em magia, como seu mestre tinha sido antes dele. Ele declarava que ele mesmo era o salvador, enviado pelos seres celestiais como seu mensageiro, a fim de ensinar os procedimentos mágicos pelos quais seria possível subverter os anjos que criaram este mundo e que continuavam a manter a humanidade na escravidão.

Provavelmente, o primeiro gnóstico que tentou reinterpretar o evangelho cristão foi Cerinto. Ele viveu em Éfeso, perto do fim do século 1, e em seu sistema se encontra o dualismo derivado que é característico do gnosticismo em geral. Ele também fez distinção entre Jesus e Cristo: Jesus era o homem, filho de Maria e José, enquanto Cristo era o ser divino que desceu sobre Jesus em seu batismo. Portanto, Cerinto não era um docetista no sentido estrito, embora ele solucionasse o problema da união da humanidade com a divindade em Cristo estabelecendo uma distinção radical entre elas. Quando Cristo completou sua missão como um mensageiro para a humanidade, ele abandonou a Jesus, e foi o último que sofreu, morreu e ressuscitou dos mortos, pois o próprio Cristo é impassível. De acordo com a tradição, o grande oponente de Cerinto em Éfeso foi São João – seja ele quem for.30 Ressalte-se que a Primeira Epístola de João incluída em nosso Novo Testamento parece ter se endereçado diretamente contra ele.31

Por outro lado, o gnosticismo estava admiravelmente bem ajustado ao espírito sincretista de seu tempo. Cada mestre tomava de outros qualquer coisa que parecesse conveniente, de forma que as seitas e escolas estavam tão misturadas que os historiadores modernos simplesmente devem confessar que são incapazes de estabelecer distinções precisas entre as várias tendências gnósticas. Dessa maneira, se o gnosticismo representa um problema acadêmico para o historiador, representou um problema urgente para os cristãos nos séculos 2 e 3, que viam sua fé ameaçada não somente por violentos ataques externos, mas também – e até mesmo de forma mais aguda – por doutrinas que tentavam se apropriar daquilo que consideram os aspectos mais valiosos do Cristianismo. Tais doutrinas tentavam apresentar esses aspectos do Cristianismo de tal maneira que os tornassem mais facilmente aceitáveis a seus contemporâneos.

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