O rótulo “Expiação Limitada” é singularmente infeliz por duas razões. Primeiro, é uma expressão defensiva e restritiva: aqui está a expiação, e então alguém quer limitá-la. A noção de limitar algo tão glorioso quanto a expiação é intrinsecamente ofensiva. Segundo, mesmo quando inspecionada mais calmamente, a “expiação limitada” é objetivamente enganadora. Todas as visões da expiação “limitam-na” de alguma forma, salvo a visão do universalista desqualificado. Por exemplo, o arminiano limita a expiação considerando-a meramente potencial para todos; o calvinista considera a expiação definitiva e eficaz (isto é, aqueles por quem Cristo morreu certamente serão salvos), mas limita esta eficácia aos eleitos; o amiraldiano limita a expiação em boa parte da mesma forma que o arminiano, embora as suas estruturas básicas sejam diferentes.
Pode ser menos prejudicial, portanto, distinguir a expiação geral e a expiação definitiva, em vez da expiação ilimitada e a expiação limitada. Os arminianos (e os amiraldianos, a quem mencionarei em conjunto em benefício da discussão) defendem que a expiação é geral, isto é, suficiente para todos, disponível para todos, condicionada apenas à fé. Os calvinistas entendem que a expiação é definida, isto é, que Deus deseja que ela seja eficaz para os eleitos.
Pelo menos parte do argumento em favor da expiação definitiva funciona da seguinte forma:
Vamos admitir, em benefício do argumento, a veracidade da eleição. Este é um ponto onde esta discussão cruza com o que foi dito no terceiro capítulo sobre a soberania de Deus, e seu amor eletivo.
Neste caso, a pergunta pode ser formulada desta forma: Quando Deus enviou o seu Filho para a cruz, Ele pensou no efeito da cruz em relação aos seus eleitos, de modo diferente da maneira que pensou no efeito da cruz em relação a todos os outros? Se alguém responder negativamente, é muito difícil ver que esta pessoa esteja realmente defendendo, totalmente, a doutrina da eleição; se alguém responder positivamente, então, esta pessoa se voltou para alguma noção da expiação definitiva. O fato de a expiação ser definitiva diz mais respeito à intenção de Deus na obra da cruz de Cristo do que à extensão de seu significado e importância.
Mas a questão não é meramente de lógica, e dependente da eleição. Aqueles que defendem a expiação definitiva citam textos. Jesus salvará o seu povo dos seus pecados (Mt 1.21) não todos. Cristo se deu a si mesmo “por nós”, isto é, pelo povo da nova aliança (Tt 2.14), “para nos remir de toda iniquidade e purificar para si um povo seu especial, zeloso de boas obras”. Além disso, Cristo, em sua morte, não fez meramente uma provisão adequada para os eleitos, mas na verdade alcançou o resultado desejado (Rm 5.6-10; Ef 2.15,16). O Filho do Homem veio para dar a sua vida como resgate “de muitos” (Mt 20.28; Mc 10.45; cf. Is 53.10-12). Cristo “amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela” (Ef 5.25).
O arminiano, porém, responde que há simplesmente textos demais do outro lado da questão. Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho (Jo 3.16). Planos exegéticos inteligentes que fazem do “mundo” um rótulo para se referirem aos eleitos, não são muito convincentes. Cristo Jesus é a propiciação “pelos nossos pecados e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” (1 Jo 2.2). E há muitas outras passagens que devem ser analisadas da mesma forma.
Como avançaremos rapidamente? Os argumentos dispostos em ambos os lados são naturalmente mais numerosos e mais sofisticados do que indiquei nesta descrição resumida. Mas lembre-se, por um momento, do esboço que apresentei no primeiro capítulo, das variadas maneiras que a Bíblia fala sobre o amor de Deus: (1) o amor intra-Trinitariano de Deus, (2) o amor de Deus mostrado em seu cuidado providencial, (3) a advertência e o convite ansiosos de Deus a todos os seres humanos quando Ele lhes convida e lhes ordena que se arrependam e creiam, (4) o amor especial de Deus dirigido ao povo eleito, e (5) o amor condicional de Deus dirigido ao seu povo da aliança quando fala na linguagem da disciplina. Mencionei o fato de que se você tornar absoluta qualquer destas maneiras pelas quais a Bíblia fala do amor de Deus, fatalmente gerará um sistema falso que excluirá outras coisas importantes que a Bíblia diz, e assim, no final, a sua visão a respeito do Senhor será distorcida.
Neste caso, se adotarmos a quarta destas maneiras de falar a respeito do amor de Deus (isto é, o amor peculiar e efetivo dirigido ao povo eleito), e insistirmos que esta é a única maneira como a Bíblia fala do amor do Todo-Poderoso, então a expiação definitiva é exonerada, mas ao custo de outros textos que não se encaixam facilmente neste molde, e à custa de ser incapaz de dizer que há qualquer sentido no fato de Deus demonstrar uma postura amorosa, desejosa e salvadora em relação ao mundo inteiro. Além disso, já não haveria sentido no fato da expiação ser suficiente para todos, sem exceção. Por outro lado, se você colocar todos os seus “ovos teológicos” no terceiro cesto, e pensar no amor de Deus exclusivamente em termos de um convite aberto a todos os seres humanos, terá excluído não só a expiação definitiva como uma construção teológica, mas também uma série de passagens que, lidas naturalmente, significam que Jesus Cristo realmente morreu de um modo especial pelo seu próprio povo, e que Deus, com conhecimento perfeito dos eleitos, viu a morte de Cristo em relação aos eleitos de uma maneira diferente daquela em que Ele a vê relacionada a todos os demais.
Com certeza é melhor não introduzir separações onde Deus mesmo não as introduziu. Se alguém defender que a expiação é suficiente para todos e eficaz para os eleitos, então os dois conjuntos de textos e preocupações são conciliados. Até onde eu posso ver, um texto como 1 João 2.2 afirma algo sobre a amplitude potencial da expiação. Da forma como entendo o contexto histórico, os adversários protognósticos que João estava enfrentando, pensavam ser uma elite ontológica que desfrutava de um acesso particular e interior a Deus, por causa da inspiração especial que haviam recebido. Mas quando Jesus Cristo morreu, João responde, não foi somente por causa dos judeus ou, agora, de algum grupo, agnóstico ou o contrário, que se posiciona como intrinsecamente superior. Longe disso. Não foi somente pelos nossos pecados, mas também pelos pecados do mundo inteiro. O contexto, então, entende isso com o significado de algo como “potencialmente para todos sem distinção” em vez de “efetivamente para todos sem exceção”, porque, no segundo caso, todos sem exceção devem com certeza ser salvos, e João não supõe que isto ocorrerá. Isso está alinhado, então, com passagens que falam do amor de Deus no terceiro sentido listado acima. Mas é difícil ver porque isto deveria excluir o quarto sentido nas outras passagens.
Em anos recentes, tenho tentado ler fontes primárias e secundárias sobre a doutrina da expiação a partir de Calvino. Uma das minhas impressões mais fortes é que as categorias do debate gradualmente mudam com o tempo, de modo a forçar a separação onde um pedaço ligeiramente diferente da estrutura de formulação de perguntas permitiria uma síntese. Corrigir isto, eu sugiro, é uma das coisas úteis que posso realizar a partir de um estudo adequado do amor de Deus na Sagrada Escritura. Porque Deus é uma pessoa, certamente não será surpresa se o amor que o caracteriza como uma pessoa for manifestado, de várias maneiras, em relação a outras pessoas. Mas é sempre o amor que estará envolvido em tudo isto.
Defendo o argumento, então, que tanto os arminianos como os calvinistas deveriam corretamente afirmar que Cristo morreu por todos, no sentido de que a morte de Cristo foi suficiente para todos, e que a Escritura retrata Deus como convidando, ordenando, e desejando a salvação para todos, por amor (no terceiro sentido desenvolvido no primeiro capítulo). Além disso, todos os cristãos também deveriam confessar que, em um sentido ligeiramente diferente, Cristo Jesus, no intento de Deus, morreu efetivamente apenas para os eleitos, em harmonia com a maneira que a Bíblia fala ao amor seletivo especial de Deus pelos eleitos (no quarto sentido desenvolvido no primeiro capítulo).
Autor: D. A. Carson
Trecho extraído do livro A Difícil Doutrina do Amor de Deus, pág 77-82.
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