Semeando o Evangelho

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Semear a Verdade e o Amor de Deus

quarta-feira, 11 de julho de 2018

SAUL E A MÉDIUM DE EN-DOR

Por Augustus Nicodemus Lopes

A Bíblia relata um episódio peculiar que gera muitas dúvidas entre os cristãos. O rei Saul está prestes a travar uma batalha contra os filisteus, e seu coração está pesado, com medo do enfrentamento. Ele tenta consultar Deus, mas só encontra o silêncio. Angustiado, Saul decide, então, consultar uma necromante que vivia na localidade de En-Dor. Ele se disfarça, vai à noite até ela e lhe pede que invoque o espírito do profeta Samuel dentre os mortos, a fim de tentar saber do futuro por meio dele. O que se segue é enigmático.

Então, lhe disse a mulher: Quem te farei subir? Respondeu ele [Saul]: Faze-me subir Samuel. Vendo a mulher a Samuel, gritou em alta voz; e a mulher disse a Saul: Por que me enganaste? Pois tu mesmo és Saul. Respondeu-lhe o rei: Não temas; que vês? Então, a mulher respondeu a Saul: Vejo um deus que sobe da terra. Perguntou ele: Como é a sua figura? Respondeu ela: Vem subindo um ancião e está envolto numa capa. Entendendo Saul que era Samuel, inclinou-se com o rosco em terra e se prostrou. Samuel disse a Saul: Por que me inquietaste, fazendo-me subir? Então, disse Saul: Mui angustiado estou, porque os filisteus guerreiam contra mim, e Deus se desviou de mim e já não me responde, nem pelo ministério dos profetas, nem por sonhos; por isso, te chamei para que me reveles o que devo fazer. Então, disse Samuel: Por que, pois, a mim me perguntas, visto que o SENHOR te desamparou e se fez teu inimigo? Porque o SENHOR fez para contigo como, por meu intermédio, ele te dissera; tirou o reino da tua mão e o deu ao teu companheiro Davi. Como tu não deste ouvidos à voz do SENHOR e não executaste o que ele, no furor da sua ira, ordenou contra Amaleque, por isso, o SENHOR te fez, hoje, isto. O SENHOR entregará também a Israel contigo nas mãos dos filisteus, e, amanhã, tu e teus filhos esta­ reis comigo; e o acampamento de Israel o SENHOR entregará nas mãos dos filisteus. De súbito, caiu Saul estendido por terra e foi tomado de grande medo por causa das palavras de Samuel; e faltavam-lhe as forças, porque não comera pão todo aquele dia e toda aquela noite.

1 Samuel 28.11-20

Para compreendermos o que ocorreu nesse episódio, precisamos começar lembrando o contexto em que ocorreu. Saul estava em guerra contra os filisteus e encontrava-se muito aflito porque estava perdendo. A essa altura, o rei de Israel havia desobedecido a Deus várias vezes e provocado a ira do Senhor, o que levou Deus a manter-se em silêncio quando procurado por Saul, que só o estava buscando por interesse pessoal. Saul decidiu, então, fazer algo que era proibido pela Lei de Moi­sés: consultar os mortos por meio da necromancia (Lv 19.31; Dt 18.10-12). Ele queria falar com o profeta Samuel, já falecido. É quando ocorre o episódio descrito nessa passagem.

Na sequência do relato bíblico, acontece exatamente como fora descrito por Samuel. Depois de dois ou três dias, Saul é cercado pelos filisteus, após seus filhos já terem morrido (1 Sm 31.2). O rei, então, se vê pressionado e pede a um escudeiro para matá-lo com uma espada. O escudeiro se recusa e o próprio Saul se lança sobre a arma, suicidando-se (1 Sm 31.4-6).

A grande questão é: quem de fato apareceu quando Samuel foi invocado, considerando que Deus proibiu tal prática? Três respostas costumam ser dadas a essa pergunta.

A primeira resposta assevera que foi Satanás quem apareceu. Ele teria aproveitado aquele momento para se manifestar como se fosse Samuel. Embora o diabo não pudesse prever o futuro, ele pôde vislumbrar o desfecho da guerra, em vista da situação. Essa é a posição da maioria dos cristãos, que creem nessa teoria por três motivos. Primeiro, eles não acreditam que Deus teria atendido Saul por meio de um método que o próprio Senhor condena. Segundo, se de fato fosse Samuel, isso contrariaria a afirmação bíblica de que mortos não podem voltar a se comunicar com os vivos. Terceiro, porque há um forte vínculo de Satanás com as práticas ocultistas.

O problema com essa interpretação é que o texto bíblico não menciona Satanás. Em nenhum momento se refere a ele como participante da cena. Em outras ocasiões, quando Satanás está agindo, a Bíblia deixa isso claro. É o caso da serpente do Éden ou de quando Pedro quis impedir Jesus de ir para a cruz, ao que o Senhor lhe disse: ”Arreda, Satanás!” (Mt 16.22-23). Portanto, caso se tratasse de Satanás, nada impediria o autor bíblico de expor essa realidade. Nos próprios livros históricos, há narrativas em que o texto refere-se diretamente ao diabo, como em “E Satanás incitou a Davi a contar todo Israel” (1 Cr 21.1) e no livro de Jó, que começa dizendo que Satanás apareceu e desafiou Deus a destruir o patriarca (Jó 1.11). A pergunta então permanece: se de fato era Satanás, por que o autor do texto não deixou isso claro?

A segunda interpretação é que a mulher  seria uma charlatã. Ela, na verdade, não teria visto nada. E, como acontece muito nessas situações de invocações espíritas, a médium, percebendo que estava diante do rei Saul, começou a imitar a Samuel. Assim, ela teria feito toda uma pantomima para simular a presença do profeta morto. Essa linha interpretativa também oferece um problema: o relato bíblico não nos dá o menor sinal disso. A mulher parece ter sido genuinamente apanhada de surpresa, e a descrição do que aconteceria dias depois é precisa. A terceira interpretação diz que se tratava de Samuel mesmo. Em termos exegéticos, essa é a posição que mais se aproxima do relato bíblico. Veja estes versículos: “Vendo a mulher a Samuel, gritou em alta voz” (v. 12), “Entendendo Saul que era Samuel, inclinou-se com o rosto em terra e se prostrou” (v. 14), “Samuel disse a Saul” (v. 15), “Então, disse Samuel: Por que, pois, a mim me perguntas, visto que o SENHOR te desamparou e se fez teu inimigo?” (v. 16). O escritor do livro de Samuel acreditava que quem aparecera naquela ocasião era mesmo o profeta Samuel. E essa é a minha posição.

Por que acredito que Deus fez isso? Para que o castigo de Saul fosse aumentado e ele fosse ainda mais reprovável diante de Deus. O fato de que Deus assim procedeu não quer dizer que é possível fazer isso hoje. Precisamos lembrar que o mesmo Deus que fez as normas pode suspendê-las, em  caráter excepcional. A aparição de Moisés e Elias ao lado de Jesus, por ocasião da transfiguração, também exemplifica esse ponto. Moisés havia morrido e Elias fora levado ao céu. Eles entraram na glória celeste, estavam na presença de Deus. Contudo, o Senhor permitiu que eles, séculos depois, voltassem momentaneamente e aparecessem ao lado de Jesus, na presença dos discípulos: “Eis que dois varões falavam com ele: Moisés e Elias, os quais apareceram em glória e falavam da sua partida que ele estava para cumprir em Jerusalém. Pedro e seus companheiros achavam-se premidos de sono; mas, conservando-se acordados, viram a sua glória e os dois varões que com ele estavam” (Lc 9.30-32). Foi uma ocasião única. Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas. Era preciso que os discípulos vissem que Jesus era o Messias, o Filho de Deus anunciado na Lei e nos Profetas. Não temos mais nenhum registro bíblico de que Deus tenha permitido isso outra vez. Na verdade, somos ensinados que os mortos não voltam a este mundo.

Tentar consultar os mortos continua sendo proibido, assim como continua sendo impossível que os mortos falem com os vivos, como Jesus mesmo afirmou na história do rico e de Lázaro. Quando o rico, que estava no inferno, quis voltar para o mundo dos vivos, foi-lhe dito que os de lá não podiam mais passar para cá (Lc 16.26).

O ocorrido com Saul nessa passagem foi, portanto, uma exceção. Pois Deus mesmo faz as regras e as suspende de acordo com sua soberana vontade e com seus propósitos.

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