O casamento de Sansão (14:10-19)
A Escritura relata que o pai de Sansão, como chefe e representante da família, dirige-se a Timna para o casamento do filho. Embora o texto omita alguns detalhes, provavelmente Sansão já estava no local em que o casamento aconteceria quando seu pai chegou, com trinta rapazes para o acompanharem na festa, que se estendia por uma semana (v. 10-12; veja também Gênesis 29:27).
Ora, na festa de casamento, dava-se um grande banquete (Gênesis 29:22; Tobias 7:14). Acontecia na casa dos pais da noiva, por motivos incomuns, mas geralmente realizava-se na casa do noivo.
A cerimônia principal era a entrada da noiva na casa do marido. O noivo, com a cabeça adornada com um diadema (Cantares 3:11; Isaías 61:1), e acompanhado por seus amigos com tamborins e músicas (1 Macabeus 9:39), deslocava-se à casa da noiva, que, ricamente vestida e adornada com joias (Salmo 45:14-15; Isaías 61:10), estava coberta com um véu (Cantares 4:1, 3; 6:7), que só era descoberto no aposento nupcial, quando a moça, acompanhada de suas amigas (Salmo 45:15), era conduzida à casa do esposo (Salmo 45:16; Gênesis 24:67).
O casamento [“israelita”, minha ênfase] se consumava já na primeira noite (Gênesis 29:23; Tobias 8:1). Dessa noite nupcial se conservava o tecido manchado de sangue, que atestava a virgindade da noiva e servia de prova em caso de calúnia do marido (Deuteronômio 22:13-21).11
Porque o vinho era comum em festas de casamento (João 2:1-3), alguns estudiosos pressupõem que Sansão “deve” ter consumido a bebida, infringindo, assim, uma das regras do nazireado (veja Números 6:3-4). Com efeito, a história não indica que Sansão tenha bebido vinho.
No casamento de Sansão percebemos uma diferença em relação ao casamento judeu. A mulher, ao casar-se, deixa a casa de seus pais para morar com o seu marido. Entretanto, o casamento de Sansão “se parece muito com uma forma encontrada entre os árabes da Palestina; é um verdadeiro casamento, mas sem relação sexual permanente, e a mulher segue vivendo com os pais. A esposa é chefe em sua casa, e o marido, chamado yôz musarrib, “esposo visitante”, aparece como hóspede e leva presentes (15:1)”.12
A expressão “sucedeu que, como o vissem” (v. 11) [ARA, ARC], é melhor traduzida por “quando os filisteus o viram”, ideia transmitida pela Bíblia de Jerusalém e pelas versões estrangeiras NIV, ESV, NASB e ASV.
Os “trinta homens”, escolhidos pela família da noiva, como acompanhantes de Sansão no casamento, eram chamados de “os filhos da câmara nupcial”, ou “amigos do noivo”. Contextualizando o termo, eram os “padrinhos” (Mateus 9:15; Marcos 2:19; Lucas 5:34). A função desses homens era “permanecer perto do noivo. Eram convidados para as bodas; eram os encarregados dos preparativos e esperavam fazer todo o possível para promover o êxito da festividade”.13
Por falta de informações, não é possível saber por que Sansão não levou consigo os “padrinhos” exigidos para a festa [por isso o clã da noiva forneceu os rapazes para o auxiliarem]. É provável que Sansão tenha convidado alguns de seus amigos da tribo de Dã para o casamento – mas por causa dos filisteus serem inimigos dos israelitas, e também por discordarem do “casamento misto” –, decidiram ser melhor não comparecer. Charles Ellicott endossa: “O fato de Sansão não levar ninguém consigo parece comprovar que o seu casamento foi bastante impopular entre seus conterrâneos”.14
Outro fato que o relato bíblico não explica é por que escolheram trinta homens para acompanharem Sansão, um número relativamente grande para padrinhos. Existem duas possiblidades. 1) Talvez os filisteus quisessem honrá-lo; 2) ou tinham receio dele.
Uma vez que o texto parece sugerir que a escolha destes trinta rapazes ocorreu de forma imediata, talvez para evitar imprevistos na festa de casamento, algo estranho está implícito.
Acredito que não havia alguma razão aparente para que os filisteus enaltecessem Sansão, pois desprezavam os israelitas. Mas é plausível que tivessem medo dele, por ser notavelmente forte, mesmo que fosse alguém conhecido em Timna, por suas constantes visitas. Ainda que não existissem motivos até aquele momento para que os filisteus temessem a Sansão, é impossível descobrirmos por que tantos homens foram escolhidos para serem seus “padrinhos”.
Um homem sagaz (14:12-18)
Nesta perícope, temos a descrição do enigma que Sansão propôs aos filisteus. Vejamos, pois:
Do que come saiu comida; do que é forte saiu doçura (v. 14).
Sansão estabelece três condições para essa incógnita com uma aposta:
O enigma poderia ser respondido em até sete dias, o tempo que durava a festa de casamento.
Se os filisteus conseguissem decifrar a “charada”, Sansão daria a eles trinta vestes de linho e trinta mudas de roupas (NVI).
Porém, se não conseguissem descobrir o significado do enigma, os filisteus teriam que dar os trajes a Sansão (v. 12-13).
Os enigmas eram bastante populares e apreciados no mundo antigo, principalmente em festas. Aqueles que tratavam de questões triviais da vida não costumavam ser aceitos pelos judeus, conforme evidências no Antigo Testamento (por exemplo, 1 Reis 10:1). Além de complexo e praticamente impossível de ser desvendado, o enigma de Sansão demonstrava muita perspicácia.
Depois que Sansão apresentou o desafio, ele foi prontamente aceito pelos trinta homens. O prêmio que o vencedor ganharia tinha um valor muito significativo. “As camisas (v. 12-13) eram grandes pedaços retangulares de linho fino, usados diretamente sobre o corpo, de dia ou de noite. As vestes festivais eram equivalentes às “roupas domingueiras”, isto é, as melhores roupas. Eram trajes de qualidade superior, com belos desenhos, não designados para uso diário, mas para ocasiões especiais, tais como um casamento. A pessoa comum possuía apenas um traje assim. Tais roupas frequentemente se tornavam a principal fonte de saque, após a batalha (cf. 5:30)”.15
Após três dias pensando, os filisteus não conseguiram resolver o enigma (v. 14c). Em seguida, para não serem derrotados na aposta, decidem trapacear; os trinta homens coagem a noiva de Sansão a persuadi-lo a revelar o segredo do enigma a ela, para depois contar a eles (v. 15).
Todavia, há uma dificuldade cronológica nos versículos 15-17. O versículo 12 mostra que a festa durou sete dias. Três dias depois, os filisteus não haviam encontrado a resposta do enigma (v. 14). Destarte, no sétimo dia, pressionada pelos trinta homens e ameaçada de morte, juntamente com sua família, a esposa de Sansão, manipulando-o psicologicamente, consegue extrair dele o segredo do enigma e o revela aos filisteus (v. 15-17).
A expressão “sétimo dia”, na Septuaginta [versão grega do Antigo Testamento], é traduzida por “quarto dia” (v. 15); não soluciona o problema, mas faz com que o versículo 14 não fique incongruente. Contudo, a parte inicial do versículo 17, onde a mulher de Sansão chora e o importuna por uma semana, permanece destoante.
Jordan James propõe uma interpretação alternativa:
Este trecho não está exatamente em ordem cronológica. Pelo visto, os filisteus vieram à noiva de Sansão no primeiro dia e ameaçaram-na, de modo que ela chorou todos os sete dias da festa (v. 17); mas eles vieram de novo e impuseram medo nela no sétimo dia (v. 15), de forma que ela pressionou Sansão duramente naquele dia (v. 17).16
Ainda que a sugestão de James seja interessante, pessoalmente, acredito que a melhor explicação para este impasse cronológico seria entendermos que, não no sétimo dia da “festa”, mas no sétimo dia da “semana”, no “sábado”, ou antes disso, talvez no “quarto dia” da festa [como traduziu a NBV e a Nova Versão Transformadora], os trinta homens obrigaram a mulher de Sansão a descobrir a chave do enigma e contar a eles, para que “vencessem” a aposta (v. 15-17).
John Gill corrobora:
Não no sétimo dia da festa, mas, em algum tempo antes disso, os filisteus pressionaram fortemente a esposa de Sansão a revelar o segredo do enigma a eles; e isso ocorreu no sábado, no sétimo dia da semana, não no sétimo dia da festa.17
No último dia da festa (v. 12), os filisteus disseram a Sansão a resposta do enigma (v. 18). Indignado, porquanto era impossível alguém descobrir o significado daquela incógnita, que se baseava em uma experiência pessoal de Sansão, quando lutou com o leão e o matou, e por conseguinte extraiu mel de uma colmeia que havia se formado em seu esqueleto, ele responde com algo semelhante a outro enigma: Se vocês não tivessem arado com a minha novilha, não teriam solucionado o meu enigma. (NVI)
Sansão utiliza “uma metáfora que remonta às atividades agrícolas, onde não apenas bois, mas vacas e novilhas eram, e continuam sendo, usadas para lavrar a terra. Provavelmente, não significa mais do que [os trinta homens] terem recorrido à ajuda de sua esposa – uma atitude desonesta, que poderia ter sido considerada por um homem de espírito e generosidade menos nobre como a libertação de cumprir o seu dever no casamento”.18
Portanto, o segredo da “charada” que a futura esposa de Sansão revelou aos filisteus denotou que o casamento não foi consumado, porque, no final do sétimo dia da festa, o enigma foi respondido. “Sansão não entrou na câmara nupcial, o que significava que o casamento estava invalidado”19, visto que sua noiva foi dada como mulher a um dos trinta companheiros (v. 20).
Ora, enfurecido pela traição de sua noiva, mas “possuído” e “guiado” pelo Espírito de Deus, e para honrar sua aposta, Sansão desce a Ascalom, mata trinta homens, pega as suas roupas e as dá aos que tinham explicado o enigma (v. 19). (NVI)
A escolha de Ascalom, na costa, a cerca de 40 quilômetros de Timna, e uma das cinco principais cidades dos filisteus, provavelmente impeliu Sansão a evitar a possibilidade de alguém relacionar esta façanha com o incidente na festa de casamento. Se Sansão houvesse matado trinta homens num vilarejo ou cidade por perto, a coincidência apontaria diretamente para ele, e uma vingança terrível teria eclodido sobre sua família, em Zorá. Paga a dívida, Sansão retirou-se, cheio de ressentimento, para sua própria casa, sentindo-se (temporariamente) alienado de sua esposa. Contudo, era grande desgraça uma noiva ser abandonada nesta situação embaraçosa, no final dos festejos matrimoniais, de modo que ela foi dada, imediatamente, ao padrinho, ou companheiro de honra de Sansão (v. 20).20
Ainda que os filisteus tenham conseguido a resposta do enigma de forma injusta, na verdade, Sansão é quem ganhou a aposta, uma vez que os trinta homens não conseguiram descobrir o significado do enigma honestamente.
Diante de tudo, algo interessante permanece subentendido: Por que Sansão não contou aos pais sobre o evento com o leão? Afinal, o enigma foi baseado naquela circunstância. Embora o texto não descreva o motivo explicitamente, acredito que, pelo escopo geral da história, Sansão omitiu de seus pais o incidente com o leão não porque havia infringido uma das regras do nazireado [“tocando em um cadáver”] e pecado contra Deus, mas por estratégia (v. 16). Talvez Sansão já estivesse planejando usar o “enigma” – criado a partir de sua experiência com o leão – contra os filisteus, mas em uma ocasião propícia.
Todavia, muitos teólogos, ao comentar sobre a festa de casamento e a peripécia do enigma, que desencadeou a segunda façanha de Sansão [a primeira foi com o leão], alegam que seu ato foi notoriamente uma expressão de furor contra sua mulher.
Vimos, não obstante, que tanto o interesse amoroso como a decisão de Sansão em se casar com a filisteia faziam parte do propósito “maior” de Deus (14:1-4) em começar a libertar Israel da opressão dos filisteus (13:5). A proeza de Sansão em assassinar trinta asquelonitas foi um prenúncio de sua missão como libertador, que se daria mais tarde, pois ainda não era juiz em Israel, nesta época.
O casamento e as mortes executadas por Sansão foram impulsionados por Deus para suscitar, posteriormente, o primeiro de muitos embates com os filisteus (veja Juízes 15). Robert Chisholm Jr., por exemplo, admite isso, mas afirma equivocadamente:
Isso não significa que Sansão entendia seus atos nesse sentido. Ele não estava ciente de seu papel como libertador de Deus; Sansão estava simplesmente expressando sua indignação por ter sido enganado. Mas a reação egoísta, muito humana de Sansão ao truque dos filisteus, se transforma em arma de guerra nas mãos do Senhor.21
Decerto, Sansão foi um homem perspicaz. Ele sabia exatamente o que estava fazendo e qual era o seu chamado, mesmo que tenha se irado profundamente com sua noiva após ser traído, o que demonstra uma reação perfeitamente natural em seres humanos.
Juízes 13:25 realça que o Espírito do Senhor começou a guiar o “jovem” Sansão para o seu propósito como juiz, concedendo-lhe entendimento acerca da opressão dos filisteus e senso patriótico. Quando externou a seu pai o anseio de se casar com a filistéia, Sansão estava buscando uma oportunidade contra os filisteus (14:4). Ele não apresentou o enigma de forma pacífica; Sansão queria provocar os filisteus. E, neste casamento, percebeu uma ocasião bastante adequada para iniciar um conflito.
Portanto, o massacre não deve ser entendido apenas como uma mera vingança pessoal de Sansão. Esta cena é relatada como sendo uma ação “primeira” do Espírito de Deus que veio sobre ele. Não foi o sentimento de vingança que impeliu Sansão a matar, porém o Senhor, pois o texto diz que ele se irritou somente depois que entregou as roupas aos filisteus (v. 19). O mesmo entendimento também deve ser aplicado ao evento do incêndio das plantações de cereais dos filisteus, que serviu para fomentar a segunda (15:7-8) e a terceira matança de mil homens (veja 3-8; 14-17). Tudo isso era propósito do Senhor.
Em contrapartida, por que Sansão decidiu voltar para a casa de seu pai? Talvez para se restabelecer da extrema decepção que sofreu. Será que ele não pretendia consumar o casamento? Foi assim que o sogro de Sansão interpretou a situação; por isso deu sua filha como esposa a um dos “padrinhos” de Sansão. Apesar da raiva por sua noiva, ele não pretendia abandonar o casamento, como Juízes 15:1-2 ressalta, porque, algum tempo depois, Sansão decidiu visitar a mulher para efetivar o casamento, mas entendeu que o sogro foi precipitado e cometeu um erro involuntário. Entretanto, o casamento não foi consumado.
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