Semeando o Evangelho

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segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

REDESCOBRINDO SANSÃO: DESFAZENDO UMA CARICATURA (PARTE 3)

Reinterpretando o episódio em Gaza (Juízes 16:1-3; Josué 2)

O casamento com uma filisteia, o contato com o cadáver de um leão, e doravante “a suposta relação com uma prostituta em Gaza”, são os três eventos da vida de Sansão mais erroneamente compreendidos pelos cristãos. Ainda existe um quarto evento [a ideia de que Sansão suicidou] que veremos posteriormente. Contudo, se não lermos a história de maneira superficial, e analisarmos meticulosamente a cena em Gaza, alcançaremos o entendimento correto do texto.

Sansão e a prostituta (v. 1-3)

Nesta época, Sansão era juiz em Israel. Passou-se cerca de 20 anos desde os episódios do casamento não efetivado, o incêndio das plantações dos filisteus e os três massacres (14:10-20; 15:1-17). A Escritura não aduz como foi o ministério de Sansão depois dos eventos registrados.

Mas, entendemos, pela cronologia dos fatos, que Deus cerceou o rigor do poder filisteu nos 20 anos em que Sansão foi Juiz em Israel. Suas duas façanhas, antes de atuar como libertador militar – juntamente com a terceira matança de mil homens, quando já exercia o seu chamado –, reprimiu algumas ações dos filisteus contra os israelitas. Outra circunstância que intimidou os filisteus aconteceu quando eles derrotaram Israel em uma batalha e levaram a Arca de Deus, onde o Senhor executou juízos parciais sobre eles, assustando-os bastante. Isso fez com que os filisteus tratassem os israelitas com mais cautela. Esse evento ocorreu na época do combate em Afeque, quando os filisteus se posicionaram de forma mais austera sobre Israel. Eli morreu e Samuel começou seu ministério público (veja 1 Samuel 4, 5 e 6).

Não obstante, a Bíblia relata que, certa vez, Sansão decide viajar para Gaza. Chegando lá, passa metade da noite com uma prostituta. Sendo visto na cidade, os filisteus planejam uma emboscada. Cercam o local em que Sansão estava hospedado e permanecem a noite toda em vigilância, a fim de o matarem, quando saísse. Por volta da meia-noite, Sansão se levanta da cama, vai até a entrada de Gaza, arranca o portão da cidade e viaja com ele sobre as costas, até a região de Hebrom.

Gaza era a cidade dos filisteus que ficava mais afastada, ao sul, de todas as outras cinco. Entretanto, devido à sua posição estratégica nas rotas comerciais do Egito à Ásia ocidental, esta cidade tem uma história que remonta a um período bem longo, anterior à ocupação filistéia. Gaza havia sido tomada pelos israelitas, à época da conquista, porém, não foram capazes de mantê-la, nem esta, nem qualquer outra cidade costeira.22 

Afinal, por que Sansão foi a Gaza? Buscar uma aventura sexual? “A noite de prazer com uma prostituta” foi impedida pelos filisteus, que culminou em um ato raivoso de Sansão, como a maioria dos comentaristas sugerem? Talvez, mas provavelmente não.

O versículo 1, no hebraico, diz que Sansão foi a Gaza, e viu ali uma prostituta, e foi até ela [ou, literalmente, entrou a ela].  A última parte deste versículo – “e ele foi até ela” – é traduzida de várias maneiras. Vejamos, pois, as diferenças:

Sansão foi a Gaza, e viu ali uma prostituta, e coabitou com ela. (ARA)

E foi-se Sansão a gaza, e viu ali uma mulher prostituta, e entrou a ela. (ARC)

Sansão foi a Gaza, viu ali uma mulher prostituta e passou a noite com ela. (Almeida Século 21)

Dali Sansão foi até a cidade de Gaza. Lá viu uma prostituta e teve relações com ela. (NTLH)

Depois Sansão foi a Gaza. Viu ali uma prostituta e esteve com ela. (Bíblia de Jerusalém)

Certa vez sansão foi a Gaza, viu ali uma prostituta, e passou a noite com ela. (NVI)

Todavia, a Almeida Século 21, a Bíblia de Jerusalém e a NVI traduziram o hebraico como “ele passou a noite com ela” e “esteve com ela”, ao passo que a ARA traduziu como “coabitou com ela” e a ARC como “entrou a ela”. As versões estrangeiras ESV e NASB traduziram como “e ele entrou a ela”, indicando que Sansão teve relações sexuais com a prostituta [assim como a NTLH].

Ambas as traduções são possíveis, uma vez que essa expressão constitui uma das maneiras pelas quais a língua hebraica fala de relações sexuais (por exemplo, Gênesis 38:18; Ezequiel 23:44; 2 Samuel 12:24…). “Entrou a ela”, porém, nem sempre transmite a ideia de sexo. Talvez, o melhor exemplo esteja descrito no próprio livro de Juízes, em 4:22, onde Baraque entra na tenda de Jael em busca de Sísara. É a mesma expressão que aparece em 16:1; contudo, observe como algumas versões traduziram o versículo:

Ele a seguiu. (ARA)

E veio a ela. (ARC)

Ele entrou com ela. (Bíblia de Jerusalém)

Entrando ele na tenda… (NVI)

A ESV traduziu a expressão como “Então, ele foi para a sua tenda”, enquanto a NASB traduziu como “E ele entrou com ela”.

Ficou claro, a partir desses exemplos, que as várias traduções exibem a mesma expressão, porém de maneiras diferentes, de acordo com o contexto em que está inserida. Juízes 16:1 foi traduzido e interpretado com nuance sexual devido à presença de uma prostituta na cena. Mas, em Juízes 4, a relação entre Baraque e Jael não tem qualquer conotação sexual.

Via de regra, o contexto tem um papel significativo tanto para a tradução como para a interpretação. E porque a Bíblia não declara “explicitamente” o motivo de Sansão ter ido a Gaza, muitos estudiosos, descuidados, afirmam que ele visitou a cidade para se envolver sexualmente com uma prostituta. Arthur E. Cundall, por exemplo, segue esse caminho hermenêutico. Em seu comentário de Juízes, ele disse:

Nesta visita, que parece casual, a natureza sensual, rebelde, de Sansão, levou-o à companhia de uma prostituta filistéia. Aquele homem, cuja enorme força física tornou-o uma lenda, era completamente incapaz de restringir suas próprias paixões; sua fraqueza haveria de conduzi-lo à sua queda final.23

Nessa mesma linha de pensamento, Robert B. Chisholm Jr. sublinha:

A visita de Sansão à prostituta o retrata no papel de um tolo destinado para a destruição.24

Vamos tentar compreender o episódio em Gaza por uma perspectiva mais holística. Imagine se estivéssemos no mundo antigo. Você, uma pessoa bastante conhecida e “jurada de morte” pelos filisteus [como Sansão], decide fazer uma viagem para alguma cidade. Geralmente, costuma-se fazer breves paradas no trajeto [em cidades adjacentes para descansar, se alimentar ou dormir em um hotel, se a viagem for à noite] até o destino final.

Chegando à cidade, na praça, talvez um senhor ou outro homem íntegro convidasse você para se hospedar em sua casa, a fim de passar a noite (veja Juízes 19:11-21). Com isso, sua presença e o propósito da visita àquele lugar ficariam manifestos. No entanto, se você quisesse entrar em uma cidade e não ser reconhecido – seria uma boa estratégia ficar em um local “específico”, e com pessoas que não despertassem suspeitas.

Assim, para esconder seu verdadeiro objetivo em Gaza, Sansão decide se hospedar em uma casa de entretenimento que também atuava como prostíbulo. Visto que o escritor de Juízes foi lacônico em sua abordagem, não é possível saber se a prostituta que Sansão teve “contato” era a proprietária ou uma das “funcionárias” do estabelecimento.

Todavia, outro episódio semelhante a este deve ser considerado. O livro de Josué relata que dois homens foram enviados para espiar Jericó. Chegando lá, se hospedaram na casa de uma mulher. O verbo “entrar” בּוֹא (bô’), de Juízes 16:1, também aparece em Josué 2:1, e com outra prostituta envolvida, chamada Raabe.

Há quatro paralelismos que relacionam as atividades dos espiões em Jericó com o “objetivo” [que veremos adiante] e a proeza de Sansão em Gaza.

Primeiro, tanto os espias como Sansão tiveram contato com prostitutas e se hospedaram em suas residências, especificamente “bordéis” (Josué 2:1 e Juízes 16:1). Segundo, para não serem descobertos pelas pessoas de Jericó e Gaza, Sansão e os espias se esconderam em locais “estratégicos” para “investigações”. Nestas casas de prostituição, também havia conversas sobre vários assuntos entre soldados, viajantes, comerciantes e informantes. Terceiro, os habitantes de Jericó e Gaza descobriram a presença e a intenção dos espias e de Sansão, e tencionaram mata-los (Josué 2:2 e Juízes 16:2). Quarto, os espias e Sansão escaparam das cidades de maneira espetacular e indelével. Ajudados por Raabe, os espias fugiram de Jericó por uma janela (Josué 2:15-24), enquanto Sansão, audaciosamente, fugiu levando consigo o portão da cidade de Gaza (Juízes 16:3).

Embora os dois episódios sejam análogos, os cristãos não desconfiam da relação dos espias com Raabe [indubitavelmente porque Josué 2 é mais claro e abrangente do que Juízes 16:1-3],  mas de Sansão, que, baseado na interpretação popular, teve relações sexuais com a prostituta.

Por outro lado, um fato interessante deve ser enfatizado. Sansão foi visto quando entrou em Gaza. Após ter sido comunicado de sua presença, o exército filisteu, não sabendo exatamente para onde Sansão havia ido, bloqueia todas as ruas e a porta da cidade; soldados permaneceram a noite toda em vigilância, esperando que, pela manhã, quando Sansão partisse, o matassem nesta cilada (v. 2). Mas, como ele conseguiu escapar incólume de Gaza, sem que os filisteus percebessem e tentassem impedi-lo?

Robert Boling sugere que a estrutura [quebrável] do portão teria facilitado a fuga de Sansão, e que, provavelmente, os guardas estavam em salas próximas.25 Daniel Block, por sua vez, acha difícil que Sansão pudesse ter escapado desapercebido pelo portão, pois as salas da guarda ficavam entre a abertura.26 Othniel Margalith elucida que, para deslocar o portão da cidade, Sansão teria que remover primeiro o dintel, no qual se apoiava o muro superior. Isso teria provocado o colapso do muro inteiro. É difícil acreditar que os guardas não tivessem percebido o que Sansão estava fazendo!27 Arthur E. Cundall perfaz:

A dupla referência a “toda a noite” dificulta a interpretação, visto que guardas situados nos portões de Gaza perceberiam quando Sansão tentasse escapar de forma tão repentina. Não existe o menor indício de um encontro com um soldado; na verdade, o ponto central da história é que os filisteus foram pegos de surpresa. A dificuldade é minimizada se entendermos a primeira expressão, “toda a noite”, como “o dia todo”. O sentido, então, seria que os soldados guardaram o portão o dia inteiro, confiantes de que o bloqueio impediria Sansão de fugir à noite e, assim, distraíram-se na vigilância, acreditando que poderiam continuar o trabalho na manhã seguinte. Em contrapartida, os guardas no portão poderiam ter negligenciado a vigilância com o passar das horas e, depois, ficaram paralisados de terror, incapazes de qualquer ação, diante da estranha forma que Sansão escolheu para sair da cidade. Ele os surpreendeu ao deixar Gaza no meio da noite, levando consigo os portões, as umbreiras e a tranca que prendia as placas, e que se inseria nas umbreiras.28

Uma interpretação alternativa [também plausível] seria manter as duas expressões – “toda a noite” – e considerar a possibilidade de Sansão ter ido a Gaza perto do entardecer. Quando comunicaram aos filisteus que Sansão estava na cidade, traçaram imediatamente o plano de cercar todas as ruas de Gaza e dispor mais soldados à porta da cidade. Destarte, a vigilância pode não ter ocorrido “o dia inteiro”, somente à noite.

Além disso, outro fato que a história não desenvolve, é o motivo de Sansão ter partido da cidade, repentinamente, no meio da noite, e não pela manhã. Sansão sabia que os filisteus descobriram que ele estava em Gaza e que tencionavam mata-lo às portas da cidade, no dia seguinte? Provavelmente. Os filisteus devem ter presumido que Sansão estivesse fomentando um novo ataque contra eles. Portanto, Sansão foi embora da cidade antes do amanhecer, talvez por estratégia e/ou cautela.

Ora, as duas perguntas essenciais permanecem: Por que Sansão foi a Gaza? Mais importante ainda, ele teve contato sexual com uma prostituta?

A similaridade entre os eventos de Josué 2 com Juízes 16:1-3 denota [mesmo que implicitamente] uma ligação importante. Conforme vimos, os dois homens israelitas que foram enviados a Jericó, e que se hospedaram no “bordel” da prostituta Raabe, tinham um propósito – “espionar a terra antes de destruí-la”. Da mesma forma, Sansão tinha um objetivo em Gaza. O contexto anterior, a expressão hebraica “Entrou a ela”, e as melhores versões bíblicas que traduziram o versículo 1, como a Bíblia de Jerusalém, Almeida Século 21 e a NVI, indicam que Sansão não se envolveu sexualmente com a prostituta. Ao que parece, Sansão estava fazendo a mesma coisa que os israelitas em Jericó – investigando e planejando exterminar mais filisteus. Por isso que ele deve ter removido o portão que guardava a cidade, deixando-a, assim, vulnerável para batalhas ulteriores.

A força incrível de Sansão é demonstrada no fato de que o portão foi transportado numa extensão de 60 quilômetros, a maior parte em subidas, até Hebrom. Sabendo que os portões das antigas cidades frequentemente eram munidos com pregos, e cobertos de metal, para impedir que fossem queimados durante um ataque, o peso deveria ter sido maior do que um simples portão de madeira.29

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