Ser abandonado por Deus, em decorrência de nossos males morais, acaba cooperando para o nosso bem. Há vezes em nossa vida que os males nos vêm quando Deus resolve retirar de nós a sua bondade, suspendendo temporariamente a influência benéfica do seu Espírito sobre seus filhos desobedientes. Nessas situações nos sentimos caídos, desesperados pela ausência da graça confortadora. Mas trata-se apenas da ação do seu amor disciplinador.
Deus tem muita razão quando deixa de nos trazer a sua graça confortadora. Somos ainda maus e ainda transgredimos os seus santos mandamentos. Todavia, às vezes, a sua graça confortadora é retirada de nós não necessariamente por causa dos nossos pecados. Tornamo-nos muito tristes quando Deus deixa de nos abençoar temporariamente.
Quando entregue à mercê das obras de Satanás em sua vida, que lhe trouxeram dores afetivas e físicas, trazendo grandes aflições, Jó exclamou:
Porque as flechas do Todo-poderoso estão em mim cravadas, e o meu espírito sorve o veneno delas; os terrores de Deus se arregimentam contra mim (Jó 6.4).
Eu li em algum lugar que era um costume entre os persas nas suas guerras banhar as suas flechas no veneno das víboras para torná-las mais mortais ainda! As flechas envenenadas de Deus cravaram-se sobre a carne de Jó. Por essa razão, as suas feridas não saravam. O veneno era extrema mente forte, de forma que ló as entendeu como sendo “terrores de Deus”. Quando as flechas de Deus nos atingem, elas fazem doer no mais profundo do nosso ser. Jó menciona que o veneno das aflições vindas das flechas de Deus atingiram o seu espírito que “sorve o veneno delas”. As flechas do Todo-poderoso não atingem apenas o exterior dos seus filhos. Atingem também o seu interior mais profundo. Por isso, o salmista exclamou: “Cordéis da morte me cercaram e angústias do inferno se apoderaram de mim. Caí em tribulação e tristeza” (SI 116.3). É uma agonia para nossa alma ser abandonado por Deus, é como se as angústias do inferno se tivessem apoderado de nós.
Contudo, a despeito dessas flechas envenenadas que penetram o nosso ser, há algumas consolações que podemos receber:
Deus Abandona Seus Filhos Apenas Temporariamente
Com a finalidade de exercer disciplina sobre os seus filhos, Deus pode abandoná-los, deixando de lhes dar as coisas que regularmente lhes dá. Todavia, essa atitude disciplinar de Deus não é para sempre. Ele abandona seus filhos apenas temporariamente, para corrigi-los dos seus maus caminhos.
O Senhor deixa a alma de alguns crentes em aflição por um tempo de terminado, mas as suas bênçãos logo voltam a nos inundar. A tristeza e as angústias de alma que os filhos de Deus experimentam ao serem abandona dos por Deus não são perenes. Poderíamos dizer que essas tristezas podem durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã. Ela é passageira.
Há uma passagem no livro do profeta Isaías que ilustra o que dissemos acima:
Porque o teu Criador é o teu marido; o Senhor dos Exércitos é o seu nome; e o Santo de Israel é o teu Redentor; ele é chamado o Deus de toda a terra. Porque o Senhor te chamou como a mulher desamparada e de espírito abati do. Como a mulher da mocidade, que fora repudiada , diz o teu Deus. Por breve momento te deixei, mas com grandes misericórdias torno a acolher-te; num ímpeto de indignação escondi de ti a minha face por um momento, mas com misericórdia eterna me compadeço de ti, diz o Senhor, o teu Redentor (Is 54.5-8).
Há vários pontos nessa bela passagem que precisam ser analisados:
1) Esse texto trata figurativamente das relações entre Deus e seu povo como sendo a relação entre marido e mulher (v. 5).
Os crentes são a esposa do Cordeiro. A ênfase está em que o marido é (a) o Criador dela; (b) o marido é também dito ser o Senhor dos Exércitos, isto é, o que possui um poder irresistível, um domínio absoluto e universal, reinando sobre todas as hostes celestiais e terreais; (c) o marido é chamado o Santo de Israel. No período do Antigo Testamento, a igreja era regida pelo marido, que era chamado de o Santo de Israel. Era o mediador do pacto entre Deus e a nação teocrática; (d) o marido é o Redentor da esposa. A função do Cordeiro é a de ser o salvador daqueles que o Pai entregou para ele. A igreja é composta desses a quem o Pai deu a Cristo. Portanto, ele veio para não somente instituir formalmente a igreja, mas para redimi-la; (e) o marido é chamado de o Deus de toda terra. Na administração do reino de Deus, Jesus Cristo, exercendo o seu reinado messiânico, sendo o esposo da igreja, é reconhecido ser o Deus de toda a terra, porque ela governa o mundo com a autoridade que lhe foi confiada pelo seu Pai.
2) Um pouco de História ajuda a entender o contexto desses versos acima. Israel era ainda recém-nascida quando Deus a encontrou (Ez 16.4-6).
Ela cresceu, ficou bonita (Ez 16.7); Deus botou o coração nessa linda moça e se enamorou dela (Ez 16.8); por causa de seu amor por ela, Deus a enfeitou com belos adornos e ela ficou ainda mais bonita, tornando-se rainha entre as nações (Ez 16.10-13). Ela ficou famosa por causa da beleza que o Senhor havia posto nela por causa da sua glória (Ez 16.14). Todavia ela começou a ter consciência da sua beleza e da sua formosura, e começou a pecar contra Aquele que a havia enfeitado e lhe dado todas as coisas boas, traindo-o com outros amantes (Ez 16.15-59); ela fica escrava dos seus amantes tornando-se infiel àquele que tanto a amou.
3) A atitude de infidelidade da esposa causa uma reação de ira no esposo.
Por essa razão, o verso 8 diz que Deus teve “um ímpeto de indignação”. A indignação de Deus é absolutamente justa. Um marido santo e amoroso tem todo o direito de indignar-se com a atitude desleal de sua esposa. A santidade de Deus não o deixa ficar impassível diante da ofensa tão desleal. Mesmo amando a esposa, por causa da sua santidade manchada, Deus não deixou de mostrar seu ímpeto de indignação.
Quando abandonamos o bom relacionamento com Deus e abandonamos as suas verdades, Deus retira de nós as suas bênçãos com santos propósitos. Deus nos deserta quando nós o desertamos. O seu abandono é sempre resultado da nossa ingratidão com aquele que tanto nos amou e pôs a sua beleza e formosura em nós.
4) O ímpeto de indignação no marido traído é abandonar o apoio à sua esposa.
No texto de Isaías 54.6 o profeta diz que a mulher é desamparada pelo marido (veja ainda Isaías 57.16-17). No nosso texto básico podemos ver uma mulher jovem abandonada em todo o vigor da sua juventude. Quando Deus abandona a esposa, geralmente é porque ela o abandonou primeiro.
O texto ainda diz que o desamparo se evidencia no fato de ele dizer: “escondi a face de ti” (v. 8). O que significa esconder a face? Certamente, quando pecamos contra Deus, ele vira o seu rosto de nós, e mostra a sua indignação afastando as suas bênçãos graciosas de nós. Significa que ele não ouve as nossas orações por causa da sua indignação em decorrência dos nossos pecados. Os nossos pedidos não são levados em conta. É verdade que “os olhos do Senhor repousam sobre os justos, e os seus ouvidos estão abertos ao seu clamor” (Sl 34.15), mas há vezes que não nos portamos como justos e, então, percebemos que o rosto do Senhor está contra os que praticam o mal (Sl 34.16a). A sua indignação mostra o seu desprazer com os nossos pecados.
Mesmo amando-nos, Deus, no momento da sua indignação vira o seu rosto de nós. Deus nos trata com repúdio por algum tempo. É interessante notar que, de maneira justa, essa esposa é repudiada pelo seu marido (v. 6). Afinal de contas, ela agiu deslealmente ao amor leal e sincero do seu marido.
5) Essa mulher é desamparada e, por causa disso, ela tem um espírito abatido (v. 6).
Ela é deixada ao sabor dos homens ímpios que a tomam por ter sido abandonada pelo seu marido em decorrência de seus pecados. Ela vai para o cativeiro da Babilônia e fica lá durante todo o período proposto por Deus em grande abatimento. Nesse sentido, estar na Babilônia é estar no lugar de exílio, de abandono, da ausência das bênçãos consoladoras de Deus. O exílio é um tempo de saudade dolorida pela lembrança dos tempos em que eles podiam adorar alegremente ao Senhor no seu santo templo. Mas agora eles estavam acabrunhados, desanimados, desconsolados, com o espírito abatido.
6) Todavia, a alegre nova desses versos é que esse abatimento é temporário porque o texto diz que Deus abandona apenas por período determinado.
No caso de Israel, o abandono no cativeiro durou muito pouco – setenta anos. Se contarmos a história longa de Israel, esse período de cativeiro é muito pequeno. No cativeiro o povo ficou sem uma porção de bênçãos espirituais e materiais que o fariam feliz e cheio de júbilo.
Por essa razão, o texto de Isaías 54 usa duas expressões muitíssimo claras para mostrar a brevidade dos dias de abandono. Deus diz ali: “Por breve momento te deixei” e “num ímpeto de indignação escondi a minha face por um momento”.
Ainda bem que a indignação de Deus com o seu povo não é para sempre. Logo ela se desfaz. Ele se comove em amor para com seu povo. Então, em vez de continuar em ira, ele faz exatamente o contrário: ele manifesta a sua misericórdia. “Na tua ira, lembra-te da misericórdia” (Hc 3.2). Quando ele se indigna, ele afasta as suas bênçãos do povo, mas quando ele é misericordioso, ele recebe de novo o seu povo, ele torna a acolhê-lo. Depois da indignação, vem a misericórdia eterna de Deus sobre o seu povo pecador. A indignação é pouca, mas a misericórdia é grande. A indignação tem uma duração curta enquanto a misericórdia dura para sempre.
Portanto, quando Deus nos abandona, é temporário. Graças a Deus sua indignação é de pouca duração! Todavia, ela é necessária para aqueles que o amam.
Autor: Heber Carlos de Campos
Trecho extraído do livro O Ser de Deus e Suas Obras: A Providência e a Sua realização Histórica, pág 401-405. Editora: Cultura Cristã
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