Um dos equívocos mais comuns sobre o cânon do Novo Testamento é que os escritores sacros não tinham ideia de que estavam escrevendo livros inspirados que iriam fazer parte das Escrituras Sagradas. Eu já escrevi sobre este conceito em um nível geral, mostrando que havia uma clara autoconsciência apostólica entre os autores do Novo Testamento.
Embora essa autoconsciência apostólica possa ser fácil de mostrar em autores como Paulo, o que dizer dos evangelhos, que, tecnicamente falando, são formalmente anônimos? Seus escritores demonstram consciência de que eles estavam escrevendo algo como a Escritura? Para analisar isso mais detidamente, vamos considerar apenas um dos nossos evangelhos – o Evangelho de Mateus.
O primeiro passo é esclarecer nossas expectativas. Não devemos esperar que Mateus diga algo como: “Eu, Mateus, estou escrevendo as Escrituras ao escrever este livro”. Os evangelhos são um gênero muito diferente das epístolas, e não esperamos que os autores forneçam o mesmo tipo de declarações explícitas sobre sua própria autoridade, como Paulo faz em suas cartas. De fato, os escritores do evangelho estão decididamente nos bastidores e raramente fazem aparições no fluxo da história.
Entretanto, o anonimato formal dos evangelhos não precisa ser tomado como evidência de que seus autores não consideraram esses textos como tendo autoridade. Armin Baum argumentou que os livros históricos do Novo Testamento (evangelhos e Atos) foram intencionalmente escritos como obras anônimas, a fim de refletir a prática dos livros históricos do Antigo Testamento que eram anônimos (em oposição a outros escritos do Antigo Testamento, como os dos profetas, que incluiu a identidade dos autores).1
Portanto, na verdade, o anonimato dos Evangelhos, longe de reduzir sua autoridade escriturística, serviu para desenvolvê-los conscientemente, colocando-os “na tradição da historiografia do Velho Testamento”.2
Mateus contém menos evidências internas do que os demais evangelhos que também comunicam a tradição apostólica (Mateus 9:9, 10:3). Todavia, ainda há indícios de que esse evangelho foi escrito com a intenção de ser um livro semelhante às Escrituras.
O mais notável a este respeito é a maneira singular pela qual Mateus começa seu evangelho, com um “título” de abertura (v. 1), e seguido por uma genealogia (v. 2-17). Davies e Allison afirmam que a primeira frase de Mateus – Βίβλος γενέσεως – não é tanto uma referência à genealogia que se segue, mas ao livro como um todo.3
Eles escrevem: “Gênesis era um Βίβλος, e seu nome era γενέσίς. Alguém, portanto, é levado a perguntar se o uso introdutório de Βίβλος γενέσεως não teria levado os leitores de Mateus a pensar no primeiro livro da Torá e a pressupor que algum tipo de “nova gênese”, uma gênese de Jesus Cristo, se seguiria.4
A frase de abertura de Mateus é mais bem entendida como o “Livro do Novo Gênesis forjado por Jesus Cristo”.5 Esse começo sugere que Mateus está escrevendo intencionalmente em um estilo escriturístico; ele viu seu livro e queria que sua audiência o visse como uma continuação da história bíblica.
O fato de que Mateus parece moldar seu evangelho segundo o padrão dos livros do Antigo Testamento, é confirmado pelo fato de ele se voltar imediatamente para uma genealogia, colocando a história de Jesus na história de Israel, com ênfase em Davi.
A genealogia, obviamente, é um gênero bem conhecido do Antigo Testamento, o qual é frequentemente usado para certificar o desdobramento histórico das atividades redentoras de Deus entre seu povo. Nesse sentido, o paralelo mais próximo de Mateus é o livro das Crônicas, que também começa com uma genealogia que enfatiza a linhagem davídica.
Se, no século 1, as Crônicas foram consideradas o livro final do cânon hebraico, como aduz alguns estudiosos, então o evangelho de Mateus certamente seria uma sequência apropriada. Um cânon do Antigo Testamento, que termina com Crônicas, teria colocado Israel numa condição escatológica, olhando para o tempo em que o messias, o filho de Davi, se manifestaria a Jerusalém e traria libertação total ao seu povo.
Então, o capítulo de abertura de Mateus seria uma indicação clara de que ele pretendia concluir esta história. Ele está escrevendo de onde o Antigo Testamento terminou, com foco em Davi e na libertação de Israel. Independentemente se aceitamos que Crônicas foi o último livro do cânon hebraico, as conexões próximas entre Mateus e Crônicas permanecem.
Assim, com base nisso, Davies e Allison concluem que Mateus “pensou em seu evangelho como continuação da história bíblica – e também, talvez, ele imaginou sua obra como pertencente à mesma categoria literária dos ciclos escriturísticos que tratam as figuras do Antigo Testamento”.6
Autor: Michael Kruger
Fonte: Canon Fodder
Tradução: Leonardo Dâmaso
Divulgação: Reformados 21
Nenhum comentário:
Postar um comentário